O mundo atual é percebido por muitos como algo caótico, desordenado e mesmo hostil. Sensações de medo, desorientação e vazio parecem ser comuns a todos em algum momento das nossas vidas. Violência urbana, crises políticas e econômicas crônicas e consequente insegurança financeira e profissional são causas conhecidas de todos. Pode-se perceber também que nossa é vida é cada vez mais influenciada, se não dominada, por valores derivados de processos sobre os quais não temos nenhum controle. Um deles é a chamada ideologia do mercado, a partir da qual há uma tendência quase irresistível a tratar todos os aspectos da vida como objetos de consumo, muito bem embalados em imagens sem substância.

Não menos importante é a desorientação causada por cidades organizadas de maneira confusa, sem hierarquia clara, povoada por uma esmagadora maioria de edifícios equivocados na sua concepção, cuja aspiração à monumentalidade e notoriedade só agrava a sensação de se estar em nenhum lugar.

É claro que a maioria de nós gostaria que o mundo fosse diferente, mas a arquitetura faz parte do mundo real, com todos os seus problemas, e sua capacidade de ajudar-nos a enfrentá-los, embora limitada, não é desprezível. Este texto se propõe a apontar algumas maneiras em que a arquitetura e o urbanismo têm respondido ao caos contemporâneo.

Do ponto de vista urbanístico, uma característica marcante das últimas décadas tem sido a acelerada transferência de atividades normalmente realizadas em espaços abertos da cidade para o interior dos edifícios: das praças para os shoppings e centros culturais, ou espaços similares. O espaço aberto, por conseqüência, perde seu valor e se restringe a facilitar a circulação de pessoas e mercadorias. O espaço público deixou de ser primordialmente um local de encontro, coração da vida social e política, e passa a ser, na maioria dos casos, diretamente ligado ao consumo, à comida e à diversão paga, em lugares segregados, monitorados e controlados; local onde todos se sentem seguros e essa segurança é esperada. O próprio termo espaço público perde significado nestas condições, passando talvez a ser mais adequado falar-se em espaço coletivo.

Essa interiorização do espaço público coincide com a proliferação dos chamados “não-lugares”: aqueles pelos quais ninguém sente um apego particular e que não funcionam como pontos de encontro à maneira tradicional; são definidos pela super-abundância e o excesso –espaços relacionados com o transporte rápido, o consumo e o ócio (centros comerciais, supermercados, hotéis, aeroportos, etc.). Os museus talvez sejam uma exceção entre os novos lugares do final do século XX, pois se tornam motivo de orgulho para as comunidades que os constroem e em geral sua arquitetura é de qualidade superior. Mas mesmo nesses templos da cultura se sente a penetração dos valores consumistas da época, no sentido em que muitos museus têm se tornado verdadeiros centros comerciais e gastronômicos.

No que se refere às edificações em que vivemos e trabalhamos, a arquitetura tem oferecido diferentes respostas ao caos da vida contemporânea. Uma delas é a via nostálgica ou cenográfica, pela qual se constrói edificações diretamente inspiradas na arquitetura do passado, fazendo questão de que essa fonte de inspiração seja imediatamente perceptível. A idéia por trás dessa atitude parece ser a de criar um ambiente reconfortante por meio de imagens familiares. Essa prática já seria anacrônica e irrelevante mesmo que o passado evocado por essas arquiteturas fosse ligado à tradição local, mas em geral o que acontece é uma apropriação do passado de outras culturas. A conseqüência é uma “disneyficação” do mundo, onde tudo é falso e culturalmente irrelevante, além de não representar qualquer atitude positiva perante o caos exterior. Os cenários em cor pastel podem até proporcionar algum alívio temporário, mas como qualquer droga, só constituem uma fuga inconseqüente. Mas o pior desta atitude é que, sendo regressiva e antimoderna, infantiliza e corrompe os usuários, pois não os educa e os mantém num estado primitivo de cultura visual.

Criando objetos que pretendem atender de modo literal a uma suposta preferência do cliente, o arquiteto deixa de cumprir o seu papel de interpretar e qualificar as necessidades sociais e impede o desenvolvimento de uma relação ativa entre usuário e arquitetura. Uma das principais características da arte moderna, da qual a arquitetura é um caso específico, é a de apresentar uma ordem que lhe é própria, não dependente de nenhum sistema externo a ela, e isso significa que a participação do usuário é fundamental para o seu completamento. A arquitetura cenográfica retira do usuário a possibilidade de engajamento ativo com a obra de arte, e o torna um receptor passivo de imagens pasteurizadas.

A via cenográfica é originária da América do Norte, mas sua penetração pode ser sentida em qualquer grande cidade do nosso continente. A grande maioria dos empreendimentos residenciais recentes nas capitais brasileiras segue algum estilo histórico (mal) adaptado. É comum que a propaganda desses empreendimentos fale em ‘estilo californiano’, ‘arquitetura toscana’, etc. Todas as cidades brasileiras são afetadas por esse fenômeno, mas em nenhum lugar ele é mais perceptível, na extensão da sua vulgaridade, que na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, verdadeiro circo dos horrores da arquitetura contemporânea. A falta de cultura visual da maioria das pessoas que pode contratar um arquiteto em nosso país, somado a um complexo de inferioridade perante o poder econômico das potências do Primeiro Mundo, faz dos clientes presa fácil de profissionais que não entendem o papel cultural da arquitetura, e a atrelam ao mundo da moda e da publicidade.

Gostou? Texto escrito por Edson da Cunha Mahfuz, arquiteto, professor de projetos da Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Leia mais em vitruvius.com.br